Durante muito tempo, a ideia de que o brasileiro é um sujeito solidário se consolidou. Mas o coronavírus provou o contrário.
Em março do ano passado, a covid-19 aterrissou timidamente em solo tupiniquim. Na ocasião, ninguém imaginaria a futura extensão da catástrofe sanitária. O coronavírus chegou de avião. O executivo de uma grande empresa trouxe o produtor de cadáveres na bagagem. A Europa, então, já colecionava milhares de defuntos.
Em abril, o biólogo Atila Lamarino previu que o Brasil fecharia o ano com registro de até 100 mil mortes. No início de 2020, menos de mil pessoas perderam a vida. A plateia apedrejou Lamarino. “Esse sujeito é um comunista antipatriota”, reagiu a rede ensandecida. Mas o profissional da saúde errou feio. A tragédia foi subdimensionada por ele. A Terra de Santa Cruz acabou o ano contabilizando quase 200 mil óbitos. O equívoco foi de apenas cem por cento.
O príncipe Hamlet- fabuloso personagem de William Shakespeare- faria a seguinte observação sobre esse cenário fúnebre: “a louca propagação da desgraça tem método”. São ondas sobre ondas de contágios sem fim.
A pandemia, porém, apresenta utilidade pragmática: é uma ferramenta macabra para destroçar mitos estabelecidos na sociedade nacional. Um deles: a suposta cordialidade do homem (e mulher) brasileiro. E aqui não se faz referência ao livro “Raízes do Brasil” de Sérgio Buarque de Holanda. Aqui se fala sobre o comportamento do povo em meio à mortandade ascendente.
O vírus escancara uma cruel veracidade: em terras tupiniquins, prevalece a lei de murici. Aquela com a recomendação de que cada um que cuide de si. O brasileiro carece do espírito de solidariedade. Tem empatia quase nula. Não se toca com o sofrimento alheio. A morte não provoca comoção, independente do empilhamento de 200 mil ou dois milhões de cadáveres. Na mente da patuleia desse país tropical- abençoado por Deus ou amaldiçoado pelo tinhoso- tudo não passa de um acúmulo de zeros. A vida, portanto, vale zero por essas bandas.
Um fato impactante: milhares de idosos morreram no ano passado. Muitos deles cumpriam rigorosos protocolos de sobrevivência. E nada adiantou o isolamento radical. Os filhos, netos e sobrinhos foram o Uber tétrico que transportou o coronavírus para o interior de muitos lares. Esses jovens ainda “lamentaram” a morte dos “entes queridos”. Mas tudo não passou de encenações de canastronas carpideiras. Foi um comportamento sem choro e nem velas. A consternação dessa turma tem prazo de irrelevante validade. Alguns dias depois do luto, todo o mundo já estava nas baladas de sempre. Sem medo de ser feliz.
O mito do “nativo” cordial vende para o público externo a imagem de um brasileiro gentil, carinhoso, feliz, solidário e brincalhão. A covid-19 desmente essa ficção. O habitante desse paraíso das bananas, na verdade, é traiçoeiro, individualista, violento, sacana, fofoqueiro, falso, dissimulado, mercenário, hipócrita e vingativo. O vírus deixa claro que há algo de muito podre nessa Dinamarca da periferia do planeta. E assim concluiria Hamlet.
Fernando Silva é jornalista e escreve sobre política em DeFato Online.