Estudo mostra ainda que uso de cloroquina e ivermectina extrapola rede de seguidores de Bolsonaro e independe de escolaridade também
Por FOLHAPRESS
A crença em tratamentos ineficazes contra a Covid-19, como a hidroxicloroquina e a ivermectina, está disseminada além dos apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e independe de nível de renda ou escolaridade.
A conclusão é de um estudo conduzido pelas pesquisadoras Mariana Borges Martins da Silva, do departamento de ciência política da Universidade de Oxford, e Marina Pereira Novo, da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).
As descobertas sugerem que as raízes para a disseminação da desinformação médica vão além do partidarismo político e estão ligadas a fatores socioculturais e à forma como os brasileiros percebem a ciência e abordam a saúde.
O trabalho, que ainda não está publicado, combinou uma etnografia digital de médicos que promovem o chamado “tratamento precoce” e uma pesquisa online com 2.601 brasileiros de todas as regiões do país, em abril último.
Os resultados mostram que cerca de 25% dos entrevistados acreditam que a droga ivermectina é eficaz na prevenção da Covid-19 e que a hidroxicloroquina é eficiente no tratamento contra o vírus.
O Brasil é um dos poucos países do mundo que ainda adota o tratamento precoce prescrito por médicos e promovido pelo governo federal para prevenir e curar Covid-19, mesmo com as evidências científicas mostrando a ineficácia para esse fim.
Na Índia, por exemplo, a ivermectina e a hidroxicloroquina não constam mais nas diretrizes nacionais de enfrentamento do coronavírus, mas há grupos de médicos que ainda receitam os medicamentos.
As redes bolsonaristas propagaram fortemente o uso desses remédios como cura da Covid-19, utilizando como embasamento evidências frágeis publicadas em sites obscuros. Em novembro de 2020, quando a ineficácia da cloroquina contra a doença já estava comprovada, noticias falsas sobre o remédio ainda circulavam com frequência no Brasil.
O novo estudo mostra que, quando perguntados a quem atribuiriam a frase “tratamento precoce salva vidas” durante a pandemia, 50% dos brasileiros entrevistados citaram “médicos respeitáveis”, e 45%, políticos. Ao menos oito médicos que propagaram esses medicamentos faziam parte do chamado “gabinete paralelo”, principal foco da CPI da Covid.
Segundo a cientista política Mariana Silva, o trabalho acompanhou, desde agosto do ano passado, um grupo de médicos defensores do tratamento precoce e ativos nas redes sociais. “A nossa busca era entender a percepção da medicina e como isso se reflete nos eleitores para além do bolsonarismo.”
Silva diz que, embora o apoio a Bolsonaro seja um indicador essencial de crença em medicamentos sem evidência na Covid, fatores culturais e sociodemográficos também são muito importantes nesse contexto.
“Está vinculada com a forma como o brasileiro aborda a saúde, a medicina. Ele tem medo da doença, muito mais do que moradores de outros países, e quer ter um acompanhamento médico, um tratamento, seja ele qual for.”
Pessoas com menor confiança em cientistas e aquelas que associam o “tratamento precoce” a médicos respeitáveis são significativamente mais propensos a acreditar na eficácia das terapias ineficazes para a Covid-19.
Na pesquisa, 50% dos entrevistados disseram não acreditar nos protocolos da medicina baseada em evidência para a Covid-19. E desses, 20% confiam no “kit Covid”.
Para a pesquisadora, os achados sobre a baixa confiança nos cientistas foram um pouco inesperados, mas só reforçam a visão equivocada que muitas pessoas têm do poder do médico.
“A medicina baseada em evidência se apoia em protocolos, e a figura do médico some. Mas, para parte da população, o médico sério é aquele que intervém, que medicaliza. Do ponto de vista do paciente, ele se sente mais cuidado.”
A preferência pelo tratamento precoce foi medida a partir de perguntas sobre que tipo de tratamento a pessoa gostaria de ter se fosse diagnosticada com Covid, se acreditava na eficácia da hidroxicloroquina e da ivermectina e se apoiava o prefeito que tinha distribuído o “kit Covid”.
O estudo também mostra que moradores de cidades do interior do país e os evangélicos pentecostais foram mais propensos a acreditar na eficácia do “kit Covid” (36% contra 19% dos não pentecostais) e a apoiar prefeitos que o distribuíram.
“As igrejas evangélicas foram lugares de acolhimento. Pegaram médicos que defendiam o tratamento precoce e ofereciam o tratamento.”
Segundo a pesquisadora, a análise dos dados demonstram que Bolsonaro, ao defender o chamado tratamento precoce, consegue ganhar apoio entre pessoas que não são os seus leais seguidores porque o discurso se alia uma cultura popular de medicina muito apegada a remédio.
Ao mesmo tempo, Silva observa que o discurso bolsonarista antivacina não funcionou para demover a população de se imunizar.
“A fake news da vacina chinesa não colou. O Brasil está tendo um dos maiores índices de aceitação da vacina, mesmo Bolsonaro fazendo campanha brava contra. Assim como o remédio, tomar a vacina materializa um tratamento, fazer algo.”
Outro achado interessante do estudo, segundo ela, foi demonstrar que educação e renda não estão significativamente associados à desinformação médica.
“Brasileiros mais ricos e mais educados não são menos suscetíveis a acreditar na eficácia do tratamento precoce do que os brasileiros pobres ou com menor escolaridade”, reforça Silva.
As pesquisadoras fazem agora um experimento sobre as formas de combater a desinformação usando diferentes narrativas, com áudios de médicos.
“O pressuposto é de que se você falar ‘isso não tem evidência científica, larga de ser burro’ não funciona. Você tem que acolher essa necessidade das pessoas de querer fazer algo, querer se tratar.”
Para Mariana Silva, polarizar e politizar essa questão, sem entender de onde ela vem, não ajuda a comunicação com a parcela da população que não acredita na medicina baseada em evidência.
“Muitas dessas pessoas tiveram uma acolhida no campo bolsonarista que não tiveram entre os médicos cientistas.”