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Narcisismo doentio está por trás de líderes autoritários de ontem e hoje

Imagem: Arte/Uol
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Mateus Araújo

Colaboração para o TAB

François Duvalier, mais conhecido como Papa Doc (1907-1971), chegou ao poder no Haiti em 1957, exatos oito anos depois de ter sido exilado durante o golpe militar no país. Uma vez eleito, Duvalier passou a perseguir seus inimigos. Pouco tempo depois, decidiu ele mesmo estabelecer sua ditadura. Criou uma milícia para si e autoproclamou-se “presidente eterno”, um deus inabalável. “Eu sou o Novo Haiti. Quem procura me destruir procura destruir o próprio Haiti (…). Deus e o Destino me escolheram”, afirmava.

Retratado no livro “How to be a dictator: the cult of personality in the twentieth century” (“Como ser um ditador: o culto da personalidade no século 20”, em tradução livre), recém lançado pelo historiador Frank Dikötter, professor da Universidade de Hong Kong, Papa Doc é um dos governantes que marcaram a história com opressão e autoritarismo, claros exemplos de comportamento narcísico patológico — um grau de individualismo capaz de levar alguém a perseguir e até a matar em massa quem pensa diferente.

Tem sido assim ao longo dos anos: na Alemanha de Hitler, na União Soviética de Stálin ou na China de Mao Tsé-Tung — personalidades que figuram entre as oito biografias escritas por Dikötter no livro —, à direita ou à esquerda, líderes foram forjados ditadores com apoio das massas, cercados de bajuladores, ávidos pelo poder, mas sem princípios, paranoicos e com ideias um tanto bizarras.

O livro, no entanto, permite uma reflexão sobre ditaduras contemporâneas e autoritarismo nos dias de hoje. O debate entra na esteira de estudos recentes nas áreas de psicologia, psiquiatria e psicanálise. Um deles é a série de relatórios do psicólogo John Gartner, da Universidade John Hopkins, no Estados Unidos, sobre os comportamentos do presidente norte-americano Donald Trump.

O presidente Donald Trump, ao lado do presidente turco Tayyp Erdogan, em Washington Imagem: MANDEL NGAN / AFP
O presidente Donald Trump, ao lado do presidente turco Tayyp Erdogan, em Washington
Imagem: MANDEL NGAN / AFP

Em entrevista à revista Psychology Today, o pesquisador disse que Trump tem complexo de inferioridade e “narcisismo maligno” — termo cunhado pelo psicanalista Erich Fromm na década de 1960, para se referir a alguém com grave quadro narcísico, que, entre outros sintomas, apresenta sentimento de grandeza, ausência de remorso e impulsividade.

O espelho e o poder

Ao longo das últimas décadas, a psicanálise ajudou a compreender os traços psicológicos dos ditadores. A CIA, a agência de inteligência norte-americana, por exemplo, já chegou a reunir perfis de autoridades para serem usados em decisões estratégicas do governo, tendo como diagnóstico o narcisismo desses líderes.

“Narciso é o personagem do mito grego formatado por Ovídio no livro ‘Metamorfoses’ que, ao saciar sua sede em um lago, apaixona-se pela imagem refletida no espelho d’água, e, consequentemente é tragado por este lago”, explica o psicanalista Thomas Ferrari Balles.

“A partir desse mito, Sigmund Freud cria o conceito de narcisismo. Todos nós atravessamos e somos atravessados pela ação psíquica de nos identificarmos pela primeira vez com uma imagem que vai constituir o que posteriormente chamaremos de Eu”, diz Balles.

A opressão é um tipo de derivação do sofrimento narcísico. Em certa medida, quando uma pessoa sofre, ela abandona o interesse por outras pessoas e pelo mundo de forma geral. É como Narciso diante da imagem refletida no espelho d’água: fica obcecado com aquilo. Daí, explica o psicanalista, derivam a solidão e o interesse pelo divino, mas também a indiferença pelos outros, a intolerância e, em casos extremos, tentativas de eliminar as diferenças e os diferentes.

Autor de livros como “Mal-estar, Sofrimento e Sintoma: Uma Psicopatologia do Brasil entre Muros”, o psicanalista Christian Dunker, professor da USP (Universidade de São Paulo), os ditadores criam para si uma espécie de patologia do narcisismo que está sempre em descompasso com a individualização.

Esse sofrimento ao qual Dunker se refere está presente na obstinação em se tornar alguém que o próprio tirano criou como modelo inalcançável. “O que acontece no ditador: a pessoa começa a realmente acreditar que o mundo é à sua imagem e semelhança. Ele começa a fazer com que seus súditos sejam seu espelho”, exemplifica.

Presidente da Síria, Bashar al-Assad, e o líder russo Vladimir Putin Imagem: Alexei Druzhinin, RIA-Novosti, Kremlin Pool Photo/AP
Presidente da Síria, Bashar al-Assad, e o líder russo Vladimir Putin
Imagem: Alexei Druzhinin, RIA-Novosti, Kremlin Pool Photo/AP

Por isso, para satisfazer seu narcisismo, quem está no poder procura sempre reafirmar a dominação sobre os outros, inclusive perseguindo aquilo que é nele mesmo uma insegurança. É o caso dos processos de segregação, principalmente a sexual, lembra o professor. “É próprio da ditadura perturbar-se com identidades de gênero e o gozo do outro. [O ditador pensa:] ‘Há outras pessoas que gozam diferente de mim; e se gozam assim, podem estar gozando melhor do que eu.”

Essa repressão à sexualidade, acrescenta Thomas Ferrari Balles, “é uma tentativa de solucionar externamente o que se passa internamente”. “A sexualidade, tal como o pensamento, é um inimigo frequente dos ditadores, porque é anárquica e selvagem”, destaca.

Outra característica comum entre os tiranos, dizem os especialistas, é considerar-se soberano ou divino. Muitos fizeram de sua família um modelo de prole perfeita, ou mesmo nomeando filhos e cônjuges com títulos de realeza; outros se autoafirmaram deuses.

Nos anos 1930, o ditador da República Dominicana, Rafael Trujillo (1891-1961), nomeou a filha rainha e deu a ela um terço da riqueza do país. Francisco Franco, na Espanha (1892-1975), crente de ser um deus, mandou fazer seu mausoléu faraônico no Vale dos Caídos, nas imediações de Madri.

A paixão cega

“Há ditadores eleitos”, frisa Christian Dunker, para lembrar que o disparo da patologia narcísica de um indivíduo está também associado ao apoio que ele recebe dos seus “súditos” ou seus eleitores. Se oprimem e perseguem, como esses governantes podem ser escolhidos pelo povo e até incentivados a agir assim, em alguns casos?

“Quando a gente está sofrendo muito e se sente desamparado, abre possibilidade para que, dentro dos nossos ideais, a gente crie um objeto [de adoração]”, diz Dunker, referindo-se à perspectiva romantizada pelas quais muitas pessoas olham lideranças políticas, por exemplo, que surgem como “salvadores”. “A separação entre ideal e objeto fica mexida”, explica Dunker. Segundo o psicanalista, essa situação se assemelha a uma paixão. “Quando se está apaixonado, vemos coisas no objeto que não estão lá: não vemos como é precário ou autoritário; os defeitos viram virtudes. A pessoa é maleducada, violenta, mas a gente traduz isso no olhar apaixonado, como: ‘Olha como ele autêntico e sincero. Ela fala a língua do povo’.”

Não à toa, ditadores são chamados de pais ou heróis e tratados como protetores. “Se ele não tomar cuidado, é repentinamente devorado pelos seus fãs. Isso ajuda a entender porque ditadura precisa inflar ideias, como os alemães nazistas fizeram”, diz. “Quando a verdadeira face se revela ao apaixonado, a gente quer matar o sujeito. Então surgem as revoluções que decapitam os ídolos. A contraface da paixão.”

Com a era digital, as ondas de fake news e os algoritmos que condicionam a distribuição de informação na era digital são a nova forma de inflar a imagem das autoridades. Segundo o psicanalista Thomas Ferrari Balles, os controles de dados “contribuem para a união de pessoas que partilham as mesmas ideias, pensamentos, valores, ideais e preferências político-partidárias, gerando as chamadas bolhas virtuais, reedições do espelho d’água do lago de Narciso”.

Para Balles, o caráter narcísico dessas bolhas rechaça qualquer possibilidade de alteridade naquele espaço. “Não há dúvida de que as bolhas virtuais na internet contribuíram para a polarização política vista nas últimas eleições presidenciais, tanto no Brasil como nos EUA, e eu acrescentaria o narcisismo dos envolvidos como uma espécie de combustível para a animosidade e o ódio entre pessoas e grupos.”

Fonte: tab.uol.com.br

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