Dilma: várias vidas e uma morte política

A presidente morreu politicamente quando o placar do Senado registrou os votos a favor de seu afastamento.

LUIZ WEBER

Dilma Roussef (Foto: AFP)
Dilma Roussef (Foto: AFP)

Dilma Rousseff viveu várias vidas e morreu uma vida que não era sua. Na ditadura, usou os nomes de Wanda e Estela para fugir da mão pesada dos militares. Não conseguiu, foi presa, torturada. Posta em liberdade, mudou-se para Porto Alegre em meados dos anos 1970 onde daria início a sua carreira política não clandestina. Adotou, apesar de dois casamentos, o sobrenome do pai, búlgaro que imigrara para o Brasil. Décadas depois, no Planalto, fez publicar no Diário Oficial da União, em abril de 2012, a Lei n° 12.605, que passou a determinar “o emprego obrigatório da flexão de gênero para nomear profissão ou grau em diplomas”. Surgiu daí a obrigação legal de chamá-la de “presidenta”, com “a”, como exigia. Não mais apenas Dilma, Estela ou Wanda. Mas presidenta.

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A afirmação de gênero não deixava de ser uma contraposição a seu antecessor, o ex-presidente Lula. Pedetista na origem, Dilma, uma brizolista com carreira técnica no Rio Grande do Sul, incorporou-se à equipe de montagem do programa do primeiro governo Lula. Com eleição, ocupou a pasta de Minas e Energia. Não sem uma ironia tosca Dilma foi identificada como “poste” (uma denominação que se encaixava a qualquer pessoa inexpressiva apta a alcançar cargos públicos eletivos desde que tocada pelos poderes de Midas Lula).

>> Como Dilma cresceu 

No governo, Lula deu-lhe, primeiro, a pasta de Minas e Energia. Talvez por sagacidade do então presidente. Fato é que naquele período, segunda a arqueologia mais recente da Lava Jato, o petrolão já começara a ser formar. Em 2005, Dilma substituiu na Casa Civil a José Dirceu, que fora demitido por seu envolvimento no mensalão. Aos poucos novas narrativas foram-lhe emprestadas: a da economista desenvolvimentista e, posteriormente, a de gerente-geral das obras do governo. Até uma maquiagem no currículo Lattes rolou. O título de doutor, o famoso PhD, não era real. O retrospecto não era bom. Como empresária conseguira falir uma loja de venda de produtos R$ 1,99. O mercado não era, digamos, a vibe dela.

Inflada, bateu de frente com o então ministro da fazenda Antonio Palocci, médico de formação, mas que reunira bons economistas com pendor mais liberal oriundos da PUC do Rio, adversários da escola de Campinas, de Dilma e do ex-ministro Aloizio Mercadante. Declarações keynesianas, conteúdo nacional, fórmulas contracíclicas, tudo saía da boca de Dilma nas reuniões ministeriais. Na ocasião, o Brasil se beneficiava do empuxo provocado pela dinâmica da economia internacional. Nessas horas, as platitudes não parecem soar um, dois sustenidos acima. Assim, o mau humor e a sonora rispidez de Dilma atraiu uma aura especial.

Com seus prediletos abatidos no caminho (Palocci também fora sacado da Esplanada, em 2006, após o escândalo da quebra do sigilo de um caseiro que o denunciara), Lula começou a urdir a candidatura de Dilma para sucedê-lo. Aos poucos batia na tecla da gerentona. O epíteto agradou a presidenta, talvez por ser uma flexão de gênero ou por acomodar ao perfil capataz que assessores sempre criticaram nos bastidores. Certa vez, o então ministro Aloizio Mercadante revelou que Dilma tinha por hábito espancar os projetos que lhe eram apresentados uma dezena de vezes.

Lula tinha à mão o marqueteiro João Santana, hoje preso em Curitiba na esteira da operação Lava Jato. Talentoso, Santana, que tem o tique de não terminar de forma inteligível suas frases, misturando os fonemas a sons esquisitos (a qual ele atribuiu a sua velocidade de pensamento), confidenciou a ÉPOCA, em reportagem publicada em outubro de 2013, que Dilma se divertia com isso, e com ele estabelecia um diálogo cheio de onomatopeias incompreensíveis. Uma língua em que Dilma se especializou. Um rápido passeio pelo youtube basta como registro histórico da peculiar linguagem de Dilma.

No início deste ano, mais uma vez a sintaxe da frase saía confusa, palavras se embolavam, iam e vinham no discurso. Não era mais uma declaração que bombaria nas redes sociais, como a ode à mandioca. Simplesmente, naquela manhã Dilma Rousseff resolvera falar sobre detalhes técnicos, no púlpito do Planalto, da malfada compra pela Petrobras da refinaria de Pasadena, no Texas. Na véspera, o ex-senador Delcídio do Amaral a acusara – entre tantas outras declarações com até maior octanagem — de participação dolosa no negócio que causou um prejuízo apurado pelo Tribunal de Contas da União (TCU) de cerca de US$ 790 milhões. Dilma presidiu o Conselho de Administração da Petrobras na época do negócio. Mas era algo tão periférico, tão secundário, naquele momento, com o processo de impeachment embalado no Congresso, dar explicações sobre cláusulas contratuais obscuras que até mesmo auxiliares próximos se surpreenderam. “Ela leva muito a sério a questão de sua honra”, confidenciou um ministro palaciano.

De fato, por bom tempo Dilma conseguiu erguer um campo de força em torno de si em meio ao ricocheteio de casos de corrupção que um a um iam atingindo petistas ilustres durante seu mandato. No primeiro governo, patrocinou a chamada faxina, um termo soprado pelo então poderoso marqueteiro nas colunas de jornais. A ideia tinha força, uma imagem simples e comunicava bem. Não era necessariamente original, mas eficaz. Dilma varria a corrupção do governo. E não parecia ser ensaiado seu repúdio aos malfeitos. Mas ao mesmo tempo, ela não cortava os cordões umbilicais com o ex-presidente Lula, os partidos da base, com o maquinário que a reelegeria em 2014. Uma engrenagem de corrupção, saques a estatais e lavagem de dinheiro travestida de doações eleitorais legais.

Dilma não se beneficiou diretamente do ponto de vista patrimonial, até agora apontam as investigações, mas aproveitou politicamente do sistema consolidado nos dois governos Lula. Não é pouca coisa não ter embolsado dinheiro do petrolão. Procuradores e a Polícia Federal indicam obras da Odebrecht em favor de Lula, depósitos milionários em nome de Dirceu e por aí vai. Mesmo nos momentos críticos, uma impressão benevolente circundava a figura presidencial. Como se ela fora inimputável por certos atos tomados ou patrocinados na sua órbita.

>> A decadência de Dilma 

Com o andor do impeachment em velocidade acelerada no Congresso, Dilma virou protagonista de seu débâcle. Abandonou a fase das indiretas dirigidas ao então vice Michel Temer ou ao presidente afastado da Câmara Eduardo Cunha e passou à ação. Provavelmente por isso será denunciada pela Procuradoria-geral da República por obstrução à Justiça, ao tentar aparelhar o Superior Tribunal de Justiça (STJ) para obter lá sentenças favoráveis a réus estratégicos da Lava Jato.  Foi ainda flagrada em conversa telefônica com Lula onde nítida estava a intenção, frustrada por decisão judicial, de dar ao ex-presidente foro privilegiado contra as investigações de Curitiba.

Publicamente avessa à política, aos conchavos de gabinete, uma storyline que fora criada para ela por Santana e Lula, Dilma, na fase final de seu mandato, operou desde os subterrâneos de Brasília, a ponto de transformar o deputado Waldir Maranhão em nota de rodapé da história – antes da tentativa de barrar o impeachment nem isso ele era. Afastada na madrugada desta quinta-feira, Dilma avisou que pretende prolongar sua jornada política, lutar para retomar seu mandato, viajando pelo Brasil para denunciar aquilo que ela insistiu em ser um golpe, apesar de referendado pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Em três meses, o Senado julgará a perda ou não do mandato de Dilma. Essa narrativa de resistência é uma invenção de Lula. No governo FHC, montou as caravanas da cidadania, os governos paralelos. Com a Operação Lava Jato em seu encalço, o ex-presidente voltou a proclamar que andaria pelo Brasil. Sossegou em um quarto do Royal Tulip, vizinho do Palácio da Alvorada, sede residencial da presidência, onde se reuniu com políticos para tentar barrar o impeachment.  Ator principal da era petista no Planalto, Lula saiu de cena. Restou, ainda, a presença de Dilma, criada para ser uma dublê de corpo do petista, uma silhueta para as cenas desimportantes, ou perigosas, até a volta do protagonista em 2018. Mas o momento é de perigo para o PT e Dilma morreu politicamente às 6h32 quando o placar do Senado registrou os 55 votos a favor de seu afastamento.

Fonte: http://epoca.globo.com/

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